"Nunca antes na história deste país". A frase bem conhecida e "patenteada" pelo Presidente Lula deve ser aplicada ao atual momento por que passa a diplomacia brasileira. Ao colocar o Brasil como protagonista importante de assuntos complexos como este, do Oriente Médio, envolvendo Irã, Israel e EUA, na posição de interlocutor privilegiado, capaz de falar firme e ponderadamente a favor de uma postura de não confrontação e de diálogo, o país passa a adquirir respeito da comunidade internacional, fazendo, juntamente com os outros BRICs, um contraponto ao stablishment mais radical, os senhores da guerra, que querem o confronto a qualquer custo. Deixou o Brasil de ser quase que um mero espectador, que não se metia em assuntos dos quais todo país de peso e importância geopolítica não poderia se furtar, se alinhando automaticamente com o bloco EUA-Europa, quase que pedindo desculpas em situações que exijiam um posicionamento mais claro. Nesse jogo de xadrez, torcemos pela paz, esperarando pelos próximos acontecimentos...
Do Asia Times
Via blog do Azenha
Por Pepe Escobar
Por falar em Via Dolorosa, Luiz Inacio Lula da Silva foi o primeiro presidente do Brasil a visitar oficialmente Israel. Louvado por seu carisma, habilidade e formidáveis capacidades de negociador – Obama, dos EUA, refere-se a ele como “O cara” –, mal sabia o presidente Lula que, para conseguir conversar seu anfitrião, essa semana, teria de passar a perna no próprio profeta Abraão em pessoa, nada mais, nada menos.
Ao fim e ao cabo, Lula não se deixou enrolar. Não fez concessões. E, diferente do vice-presidente dos EUA Joseph Biden, semana passada, conseguiu não ser humilhado publicamente pelos donos da casa.
Lula é homem habituado a enfrentar interlocutores duros. Avigdor Lieberman, ministro de Negócios Internacionais de Israel, boicotou seu discurso no Parlamento e o encontro com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. O motivo: Lula não visitou o túmulo do fundador do sionismo Theodor Herzl. Ora essa! Nem Nicolas Sarkozy da França, nem Silvio Berlusconi da Itália visitaram o tal túmulo, quando visitaram Israel.
Brasília – como Paris e Roma – sabe muito bem que visitar túmulos não é obrigatório em viagens presidenciais. Ainda assim, um coro dos colonos judeus sionistas fanáticos do partido Likud em Israel não mediu palavras para ‘diagnosticar’ que a não-visita feriria de morte a competência do governo do Brasil para atuar com o mediador no conflito Israel-Palestina.
Lula ovacionado
No Parlamento, Lula enfrentou tentativa de linchamento, inclusive por Netanyahu, por sua política de não-confrontação e de diálogo com o Irã. O presidente do Brasil nem piscou. Condenou, com igual peso, tanto o holocausto quanto o terrorismo; lembrou os donos da casa que o Brasil e a América Latina têm posição assumida contra as armas nucleares; insistiu nas vias do “diálogo” e da “compaixão” para superar o conflito no Oriente Médio; defendeu uma solução viável de dois Estados para Israel e Palestina. Nem por isso deixou de criticar as construções de casas exclusivas para judeus em Jerusalém Leste. Foi ovacionado. Segundo depoimento de deputados israelenses, “foi muito mais aplaudido que George W. Bush”.
O profeta tropical
Nem que encarnasse o Abraão dos Abraões, Lula conseguiria convencer os sionistas fanáticos e seus lugares-tenentes. Mas, sim, Lula disse ao jornal israelense Ha’aretz o que os atores mais sérios no Oriente Médio já sabem mas não dizem; o “processo de paz” está sem rumo; não há outra alternativa além de incluir novos mediadores na mesa de negociação – parceiros novos, como o Brasil.
O mesmo se aplica à discussão do dossiê iraniano: “Os líderes mundiais com os quais conversei creem que temos de agir rapidamente, ou Israel atacará o Irã.” Lula está convencido de que novas sanções contra o programa nuclear iraniano serão contraproducentes. E suas palavras ecoaram pelo planeta: “Não podemos permitir que aconteça no Irã o que aconteceu no Iraque. Antes de novas sanções, temos de tentar, por todos os meios possíveis, construir a paz no Oriente Médio”.
A visão oficial do governo do Brasil – que ecoa e é ouvida em praticamente toda a comunidade internacional (vale dizer, não só no clube exclusivo de Washington e entre os suspeitos europeus de sempre) – é que nada, até agora, foi satisfatoriamente discutido com o Irã, sobre seu dossiê nuclear. Lula foi muito firme e claro: o Irã tem, sim, direito de desenvolver um programa nuclear para fins pacíficos nos termos admitidos pelo Tratado de Não Proliferação Nuclear do qual o país é signatário.
O Brasil ocupa hoje um dos assentos do Conselho de Segurança da ONU. Como a China, o país também não aprova e não apoiará novas sanções que os EUA querem impor ao Irã – e diga o que disser o secretário de Estado Robert Gates, que anda espalhando boatos de que os EUA já teriam os votos necessários para aprovar uma quarta rodada de sanções, porque a Arábia Saudita teria afinal convencido a China. A China jamais votará contra seus próprios interesses de segurança nacional – e o Irã é, sim, assunto de segurança nacional para os chineses.
Em maio, Lula estará em Teerã e, outra vez, reunir-se-á com o presidente Mahmud Ahmadinejad. Os sionistas linha-dura estão – como é rotina – fumegando.
Lula sabe muito bem que as chamadas “sanções espertas” [ing. smart sanctions], que visam principalmente o Corpo dos Guardas Revolucionários Islâmicos [ing. Islamic Revolutionary Guards Corps (IRGC)] – que controla o centro do poder econômico e político no Irã – também afetarão milhões de civis conectados às empresas e negócios controladas pelo IRGC, ou seja, imporá novos sofrimentos à população em geral, que já paga o alto preço imposto pelas atuais sanções. O IRGC controla pelo menos 60 portos no Golfo Persa. Impedir que a Ásia negocie c om o Irã implica bloqueio naval. E bloqueio naval é declaração de guerra.
Não pressionar o Irã
Lula chega ao Oriente Médio em conjuntura muito especial: no momento em que o governo de Netanyahu decidiu construir mais casas exclusivas para judeus em Jerusalém Leste e na Cisjordânia, mesmo ao preço de perder o apoio crucial dos EUA no front iraniano.
Ironicamente, o Brasil pode estar começando a seduzir o establishment israelense, mas mais no front econômico, que no front geopolítico.
Israel assinou um acordo de livre-comércio [ing. “free-trade agreement” (FTA)] com o Mercosul[2] – o quinto maior bloco em termos de produto interno bruto. O acordo não agradou aos palestinos, para quem o FTA que foi assinado fortalecerá o complexo industrial-militar de Israel.
E é nesse momento que o Brasil diz bem claramente que defende um Estado palestino viável, nos limites das fronteiras demarcadas em 1967. Esse acordo de livre-comércio implica uma cláusula estratégica: permite transferir tecnologia de armas aos países-membro do Mercosul. As armas que fazem a repressão em Gaza estarão, em pouco tempo, disponíveis na América Latina.
Num front paralelo, ao elogiar o papel do Brasil como mediador, o presidente Shimon Peres sugeriu pessoalmente a Lula que o Brasil fizesse coincidir, em território brasileiro, duas visitas: do presidente da Síria Bashar al-Assad e a de Netanyahu. Assad visitará o Brasil ainda esse ano; e, na semana corrente, Netanyahu também aceitou convite para visitar o Brasil. Uma reunião tropical, informal, entre Síria e Israel, poderia criar a circunstância ideal para começar a quebrar o gelo. Lula e Netanyahu organizaram um sistema bilateral de encontro entre chefes de Estado e principais ministros a cada dois anos.
Mas… e quanto aos EUA, em tudo isso? Há vigente hoje um acordo estratégico entre EUA e Brasil, pelo qual estão previstos dois encontros de nível ministerial (ministérios de Relações Exteriores) por ano, um nos EUA, outro no Brasil.
O ministro brasileiro de Relações Exteriores chanceler Celso Amorim tem excelentes relações com a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton. Em recente visita ao Brasil, Clinton insistiu muito fortemente para que Lula e Amorim apoiassem nova rodada de sanções contra o Irã. Os brasileiros recusaram polidamente e firmemente.
À Clinton restou a alternativa de reclamar, em conferência de imprensa, que o Irã estaria “usando” o Brasil, a Turquia e a China para escapar das sanções. Amorim, por sua vez, sempre lembra o desastre iraquiano: “Eu era embaixador na ONU nos dias críticos das decisões sobre o Iraque. E o que nós vimos lá foi um enorme erro.”
Lula foi meridianamente claro e específico: “Não é inteligente empurrar o Irã contra a parede. Quero para o Irã o que quero para o Brasil: usar a energia nuclear para fins pacíficos. Se o Irã for além disso, então não aceitaremos.” Exatamente a posição dos chineses.
Lula e Obama deram sinais de estar em sincronia sobre o Irã, desde o encontro que tiveram durante uma reunião dos Grupo dos 8+5 em Aquila, Itália, há nove meses. Então, Obama chegou a encorajar o diálogo Brasília-Teerã, desde que o Brasil pressionasse o Irã a aceitar o compromisso de manter seu programa nuclear estritamente para finalidades pacíficas. Foi exatamente o que Lula disse a Ahmadinejad quando se encontraram no Brasil. O que mudou foi a posição do governo de Obama, o qual, depois daqueles dias endureceu muito.
Os diplomatas brasileiros insistem que Ahmadinejad jamais fechou a porta a negociações. Em encontros diplomáticos bilaterais discretos, funcionários dos EUA admitem a diplomatas brasileiros que Ahmadinejad não é, de modo algum, intransigente; como tampouco é intransigente o Líder Supremo Aiatolá Ali Khamenei. Em discurso de 19 de fevereiro no batizado de um destróier iraniano, Khamenei mais uma vez negou que o Irã esteja trabalhando para ter armas atômicas; e destacou que as armas atômicas são ilegais, nos termos da lei islâmica, porque sempre mataram grande número de civis inocentes.
O problema, se não foi inventado, foi, no mínimo, muito aumentado pela mídia dos EUA e Europa. Por causa disso, a própria Clinton, em momento de rara sinceridade, durante viagem à América Latina, teve de admitir que as sanções ainda demorariam “vários meses” para ser implantadas, se o forem.
Mesmo antes da visita de Clinton, o ministro das Relações Exteriores do Irã Manouchehr Mottaki já admitira a jornalistas brasileiros, sem pedir sigilo, que o Brasil poderia ser uma “ponte” entre o Irã e a frente EUA-União Europeia, por causa da “posição realista” do governo e da diplomacia brasileira. Mottaki não vê o Brasil como “mediador”. Prefere falar de “um facilitador de consultas”, uma vez que Teerã entende que nenhum outro país deva falar pelos interesses iranianos.
Brasília tampouco pediu para mediar coisa alguma. Mottaki informou que ele próprio tem “trabalhado substancialmente, fazendo diplomacia telefônica” com o chanceler Amorim. Teerã evidentemente vê os benefícios de estabelecer um canal de diálogo com o ocidente industrializado mediante um país em desenvolvimento.
Os BRICs como a nova superpotência
A estratégia do presidente Lula de tentar posicionar-se como uma “ponte” é especialmente bem-vinda, uma vez que o dossiê iraniano está chegando a fase crucial, na qual as facções mais linha-dura do bloco EUA-UE-Israel estão fazendo de tudo para desmentir e apagar qualquer prova (mesmo dos serviços de inteligência) de que o Irã não está construindo bomba alguma; e já houve tentativas sistemáticas de ‘corrigir’ informes de inteligência para que sirvam como ‘prova’ do oposto do que de fato comprovam (ecos do Iraque?).
A entrada de Lula nesse cenário e arena também implica maior destaque para os BRICs (Brasil, Rússia, Índia, China), que já atuam como uma nova superpotência – ante uma ‘dominação’ cada vez mais desorientada e sem rumo, dos EUA. Nenhum dos BRICs é favorável ao isolamento do Irã; muito mais contrários são, é claro, a qualquer ataque ao Irã. E assim continuará, enquanto acreditarem que o Irã realmente não está próximo de construir sua bomba atômica, como o comprovam montanhas de evidências; nesse caso, um ataque ao Irã terá o efeito altamente indesejável de acelerar a proliferação nuclear no Golfo Persa.
Os BRICs também sabem que EUA e Irã podem, sim, se entender bem e bem rapidamente, mesmo nas questões mais espinhosas. Por exemplo, sobre o Afeganistão.
Só resta, pois, sobre a mesa, a estratégia do elefante na loja de porcelanas, de Israel. É hora de os BRICs pagarem para ver o jogo de Israel.
Se o governo de Netanyahu pode humilhar Obama e Biden no que digam sobre expansão de colônias exclusivas para judeus em Jerusalém Leste e na Cisjordânia, é razoável assumir que ignorará todas as súplicas do comandante do Estado-maior do Exército dos EUA Mike Mullen, que já disse repetidas vezes que qualquer ataque contra o Irã criará “problemas grandes, grandes, muito grandes, para todos nós”.
Israel (e também Washington) pode estar querendo apenas uma mudança de regime no Irã – que, sim, pode ser bem útil e necessária. Para isso, pode usar armas atômicas táticas e destruir as instalações nucleares do Irã. É possível que Israel esteja pronta para declarar outra guerra preventiva (conceito e ideia desenvolvidos em Israel e completamente encampados pelo governo de George W Bush). Claro que os israelenses contam com apoio logístico e político dos EUA.
Lula não avançou até tão longe. Mas o posicionamento do governo Lula do Brasil contêm embriões de todas essas espinhosas questões com as quais os BRICs devem fazer frente a Israel. Então, sim, quando isso acontecer, todo o planeta saberá que rabo, afinal, está mesmo sacudindo o cachorro.
Pepe Escobar[1] é autor de Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War [O Globalistão: Como o mundo globalizado está se dissolvendo em guerra líquida] (Nimble Books, 2007) e Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge [O blues da Zona Vermelha: instantâneos de Bagdá sob ataque]. Acaba de lançar Obama does Globalistan [Obama cria globalistões] (Nimble Books, 2009).
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