Por Mikhail Gorbachev*
O Afeganistão está um caos, com tensões crescentes e pessoas morrendo diariamente. Muitas delas -inclusive mulheres, crianças e idosos- não têm nada em comum com terroristas ou militantes.
O governo está perdendo o controle do território: das 34 províncias, o Taleban controla uma dúzia. A produção e exportação de narcóticos está crescendo. Há um verdadeiro perigo de desestabilização estendendo-se para países vizinhos, inclusive para as repúblicas da Asia Central e o Paquistão.
Precisamos compreender por que isso está acontecendo e o que ainda pode ser feito para mudar o rumo de uma situação quase desastrosa. A recente conferência em Londres com representantes de muitos países e organizações internacionais é um primeiro passo em uma nova direção.
Após preparos diligentes, os delegados em Londres adotaram decisões que podem ajudar a mudar as coisas –mas apenas se a experiência das últimas três décadas for reavaliada, e suas lições, aprendidas.
Em 1979, a União Soviética enviou tropas ao Afeganistão, justificando a medida não apenas pelo desejo de ajudar elementos amigos, mas também pela necessidade de estabilizar um país vizinho. O maior erro foi não compreender a complexidade do Afeganistão –os diferentes grupos étnicos, clãs e tribos, suas tradições únicas e mínima governança. O resultado foi o oposto do que se pretendia: instabilidade ainda maior, uma guerra com milhares de vítimas e consequências perigosas para nosso próprio país. Além disso, o Ocidente, particularmente os EUA, botaram lenha na fogueira no espírito da Guerra Fria; estavam dispostos a apoiar qualquer um contra a União Soviética, sem pensar nas possíveis consequências de longo prazo.
Como parte da perestroica, em meados da década de 80, a nova liderança soviética tirou conclusões novas dos problemas no Afeganistão. Fizemos duas decisões cruciais. Primeiro, estabelecemos a meta de retirar nossas tropas. Segundo, decidimos trabalhar com todas as partes no conflito e com os governos envolvidos para alcançar uma reconciliação nacional no país. A ideia era tornar o Afeganistão um país neutro e pacífico que não ameaçasse ninguém.
Olhando para trás, ainda acredito que era um caminho adequado e responsável. Tenho certeza que, se tivéssemos tido sucesso, muitos problemas e desastres teriam sido evitados. Nossa nova política não era apenas uma declaração; durante meu mandato, trabalhamos duro e de boa fé para implementá-lo. Para ter sucesso, precisávamos de cooperação sincera e responsável de todas as partes. O governo afegão estava disposto a ceder e esforçou-se para alcançar a reconciliação. Em uma série de regiões, as coisas começaram a melhorar.
Contudo, o Paquistão, particularmente seu alto escalão, e os EUA impediram todas as frentes de progresso. Eles queriam uma coisa: a retirada das tropas soviéticas, que achavam que os deixaria em pleno controle. Ao negar o menor apoio ao governo do presidente Muhammad Najibulla, Boris Yeltsin fez o jogo deles quando assumiu.
Nos anos 90, o mundo parecia indiferente ao Afeganistão. Naquela década, o governo caiu nas mãos do Taleban, que tornou o Afeganistão um porto seguro para os fundamentalistas islâmicos e uma incubadora do terrorismo. O dia 11 de setembro foi um despertar brutal para os líderes ocidentais. Mesmo assim, contudo, o Ocidente fez uma decisão que não foi bem pensada e portando se provou falha.
Após expulsar o governo do Taleban, os EUA acharam que a vitória militar, alcançada a pouco custo, era final e que tinha basicamente resolvido o antigo problema. O sucesso inicial foi provavelmente uma razão porque os americanos esperavam um “passeio no parque” no Iraque, dando o passo fatal de adotar a estratégia militar no país também. Enquanto isso, eles construíram uma fachada democrática no Afeganistão, guardada pela força de assistência de segurança internacional, ou seja, as tropas da Otan. Progressivamente, a Otan buscou assumir o papel de uma polícia global.
Ofensiva dos EUA contra o Taleban no Afeganistão
O resto é história. O caminho militar no Afeganistão se provou cada vez menos sustentável. Era um segredo que todos sabiam; até mesmo o embaixador dos EUA disse isso, em telegramas recentemente divulgados.
Várias vezes nos últimos meses me perguntaram o que eu recomendava ao presidente Obama, que herdou essa confusão de seu predecessor. Minha resposta tem sido a mesma: uma solução política e a retirada dos soldados. Isso requer uma estratégia de reconciliação nacional.
Agora, finalmente, uma estratégia muito similar à que oferecemos há mais de duas décadas e que nossos parceiros recusaram foi apresentada na reunião em Londres: a reconciliação, envolvendo na reconstrução todos os elementos mais razoáveis e enfatizando uma solução política e não militar.
O enviado da ONU no Afeganistão disse em recente entrevista que era necessária a desmilitarização de toda a estratégia no Afeganistão. Que vergonha que isso não foi dito e feito há muito tempo!
As chances de sucesso –sucesso, e não “vitória” militar- são, na melhor das hipóteses, de 50%. Houve alguns contatos com certos elementos do Taleban. Mais precisa ser feito para incluir o Irã no processo; muito trabalho duro precisa ser feito com os paquistaneses.
A Rússia pode se tornar uma parte importante do processo de acordo afegão. O Ocidente deve apreciar a posição que os líderes russos estão tomando no Afeganistão. Longe de se vangloriar e deixar o Ocidente encarar a questão sozinho enquanto lavamos nossas mãos, a Rússia está pronta a cooperar com o Ocidente porque compreende que é de seu maior interesse combater as ameaças vindas do Afeganistão.
A Rússia está correta em perguntar por que, durante os anos de presença militar norte-americana e da Otan no Afeganistão, nada ou pouco foi feito para deter a produção de narcóticos, que fluem em grandes quantidades para a Rússia pelas fronteiras porosas do país e ameaçam a saúde de nossa nação. A Rússia também está certa em exigir acesso a oportunidades econômicas no Afeganistão, inclusive a reconstrução de dezenas de projetos construídos com nossa ajuda e depois destruídos durante os anos 90.
A Rússia é vizinha do Afeganistão e seus interesses devem ser levados em conta. A lógica parece evidente, mas algumas vezes é preciso um lembrete.
Quero acreditar que uma nova fase esteja surgindo para o Afeganistão, um raio de esperança para seus milhões de habitantes que sofrem há tanto tempo. A chance está aí, mas é preciso muito para aproveitar a nova oportunidade: realismo, persistência e, por fim, honestidade, ao aprender com os erros feitos no passado, além da capacidade de agir com base nesse conhecimento.
*Mikhail Gorbachov foi o último presidente da extinta União Soviética e um dos responsáveis pelo fim da guerra fria. Ambientalista, Gorbachov já foi agraciado com o prêmio Nobel da paz.
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