Do Jornal do Brasil
Por Mauro Santayana
A intervenção federal no governo do Distrito Federal, solicitada ontem pelo procurador geral da República ao STF, poderá significar o início do necessário processo de reversão constitucional da autonomia do território. Como já está provado pela experiência, tratou-se de uma aberração a autonomia política da sede da República, concedida pelos constituintes de 1988, animados de uma liberalidade ingênua. Relembremos os argumentos irretorquíveis contra a desastrosa independência do Distrito Federal.
A cidade, com seus apêndices urbanos, não é unidade clássica da Federação: os donos da cidade não são os cidadãos que nela vivem. Os donos da cidade são todos os cidadãos brasileiros, neles incluídos, é claro, os brasilienses. A cidade, como entidade política, não se pertence. Ela se integra no todo, representado pela União, por ser a sede dos três poderes do Estado nacional.
O episódio de ontem revelou desatino lógico assustador, o de a lei orgânica do Distrito Federal ser entendida, pelos que a aprovaram, como documento de valor constitucional. Uma lei orgânica municipal – e é disso que se trata – cuida das posturas da cidade, de seu código de obras, de sua rede viária e dos serviços municipais de educação e de saúde. A lei orgânica dos “deputados distritais” (como são identificados, no Distrito Federal, os vereadores), afirma-lhes a prerrogativa de conceder ou não licença ao Poder Judiciário para que promova ação penal contra o governador, por eventuais delitos. Daí a sábia indiferença do ministro Fernando Gonçalves diante do dispositivo, cuja aplicação era objeto de exame bizantino da Câmara Distrital. Só pode ser constitucional o que se inscreve em uma constituição, e lei orgânica não é constituição.
Não se trata de julgar, a priori, o comportamento do governador e dos demais implicados nos fatos arrolados na denúncia da procuradora da República. Isso caberá aos juízes, diante dos argumentos e das provas oferecidas pelo Ministério Público, pela Polícia Federal e pela defesa dos acusados. O problema é mais profundo, é o do absoluto non sense dessa autonomia. Retomemos a crônica histórica. Com a independência, o Rio de Janeiro, que era a sede do governo do Vice-Reinado e, em seguida, do Reino Unido durante a presença da família real, passou a ser a sede do novo Império. A Câmara do Império promoveu, durante a Regência, o Ato Adicional de 1834, com o qual o Poder Legislativo do Império criou as assembleias provinciais e, sob o exemplo de Washington e do distrito de Columbia, transformou o Rio de Janeiro em município neutro – isto é, separado de todas as províncias. No Rio, por esse ato, mesmo depois de mitigado por Araújo Lima, não havia Poder Legislativo local, como nas províncias, mais tarde transformadas em estados.
Com a República, o município neutro se tornou Distrito Federal, isto é, território subordinado ao governo central, ou seja, a toda a Federação. Não tendo integrado uma província, como entidade de direito, nem integrando um estado, a cidade de Brasília dispõe de estatuto todo especial: pertence ao conjunto da República, mas não é membro da Federação exatamente como os outros. A boa lógica, como ocorre nas federações mais antigas, deveria considerar apenas os estados como unidades federativas, integradas, isso sim, de seus municípios históricos. A rigor, os estados deveriam ser federações de cidades, e a União, a confederação dos estados.
A natural sedução do poder levou intelectuais e altos servidores públicos residentes em Brasília a postular a autonomia plena da cidade. O Compromisso com a Nação, da Aliança Democrática, defendeu a “representação política de Brasília”, isto é, a eleição de três senadores e de deputados federais, conforme o quociente eleitoral da cidade. Era o que ocorria com o antigo Distrito Federal, o que seria respeitar o direito popular dos moradores de Brasília a votarem em seus delegados ao Congresso Nacional. É provável que o choque provocado pelos episódios atuais conduza o Congresso à reflexão, e uma emenda constitucional restitua o Distrito Federal ao povo brasileiro. Basta a vontade política do Parlamento.
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