Interessante o artigo da Carta Capital assinado por Antonio Luiz Monteiro. Encerra uma análise bem abrangente sobre como é fragil o equilíbrio de forças que dominam o mundo e como este mesmo equilíbrio está ameaçado, observando-se a crise por que passa o capitalismo, o enfraquecimento do bloco europeu em face da crise financeira e a diminuição do poder político dos EUA o que não quer dizer de forma nenhuma o desaparecimento de tal poder, tampouco podendo-se desprezar o incontestável poder militar norte-americano, além do surgimento de novos atores como os BRICs, o papel da China, a questão do Paquistão e o controle do Taleban, bem como o fator Índia e o recrudescimento de extremismos o que pode levar mais uma vez a humanidade a colocar em prática a velha máxima da "ultima ratio regum" (o último argumento dos reis). Só que nesta altura dos acontecimentos não existirá mais uma guerra global sem efeitos devastadores, principalmente quando o prórpio meio ambiente já encontra-se tão afetado pelo comportamento humano. Até onde iremos ou até onde seremos capazes de ir para salvarmos a nós mesmos?
Da Carta Capital
Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa
Se não caiu, está muito abalada a supremacia dos Estados Unidos – ou mesmo do conjunto do chamado Ocidente, dada a aguda fragilização econômica da União Europeia e sua crônica incapacidade política de atuar unificadamente como uma força estabilizadora global. Deveríamos saudar a oportunidade de uma abertura a um mundo novo ou nos preocupar com o risco de caminhar para o fim de qualquer mundo civilizado?
Não está escrito nas estrelas, mas sim nas projeções econômicas, que em mais alguns anos a produção dos BRIC ultrapassará a do G-7, e a China, a dos EUA. Isso em si não precisa ser ruim, mas, quando o poder econômico se desloca, entidades políticas e militares costumam se mover, seja para se opor à mudança na correlação de forças, seja para consolidá-la. E, como diz um velho provérbio do Quênia, quando os elefantes brigam, quem sofre é a grama.
Na última vez em que o centro de gravidade da geopolítica se deslocou, foram necessárias duas guerras mundiais para assentar um novo equilíbrio de poder. Desta vez, não só uma guerra mundial tem alta probabilidade de não deixar sobrar muita coisa para partilhar, como há razões para recear, vista a fragilidade do ambiente ante a depredação pela atividade humana, que a civilização se destrua por seu próprio funcionamento “normal”, sem necessidade de violência explícita. Nunca foi mais necessário um consenso sobre o futuro da humanidade, mas isso se tornou um sonho mais distante do que jamais foi desde a derrota do nazismo.
A liderança moral que Washington chegou a ter sobre a aliança ocidental, forjada durante a Guerra Fria, conservada nos anos 90 por hábito ou falta de opção, dissolveu-se no Iraque. De maneira demasiado óbvia, a aventura atendeu a interesses econômicos e estratégicos dos EUA e Reino Unido com o falso pretexto de combater uma ameaça terrorista internacional e desperdiçou a oportunidade de estabilizar o Afeganistão.
O Taleban voltou a controlar grande parte do país, enquanto os governos europeus que se dispuseram a acompanhar os EUA se desgastaram inutilmente e agora se recusam a apoiá-los no esforço para recuperar o controle do país para o governo notoriamente corrupto de Hamid Karzai, reeleito por um processo admitidamente fraudulento.
Países que apostaram na exacerbação militarista do poderio estadunidense agem como quem desconfia que apostou no cavalo errado. Os países da Ásia Central que chegaram a se aproximar do Ocidente agora voltam a forjar laços estratégicos com Rússia, China e Irã. Os governos pró-ocidentais criados pelas chamadas “revoluções coloridas” deram-se mal: o da Geórgia, incentivado pelos EUA a desafiar Putin, foi surrado em batalha e perdeu território, o da Ucrânia levou ao desastre econômico e os eleitores o substituíram por um mais simpático a Moscou.
Na América Latina, pode-se dizer que a influência dos EUA voltou a ser contestada como não havia sido desde a Segunda Guerra Mundial. Contrariando os prognósticos de The Economist, a mudança de governo em Washington pouco fez para reverter o enfraquecimento de sua influência na região. China e Rússia continuam a fazer acordos comerciais e militares naquilo que a revista britânica chama de backyard (quintal) dos EUA, a Unasul combate a interferência de Washington na política interna de países sul-Americanos e o Grupo do Rio lança os alicerces de uma Comunidade Latino-americana capaz de substituir a OEA em muitas de suas funções, se não em todas. O périplo latino de Hillary Clinton em 2010 foi tão vazio de resultados quanto o de Bush júnior em 2005. Se foi recebida com menos protestos, é que as esquerdas deixaram de se preocupar tanto com os Estados Unidos.
Na África, a influência tradicional das ex-metrópoles europeias e a mais recente dos EUA também começa a se evaporar, graças à disposição da China de investir nesses países sem exigir, via FMI, que seus governos desmantelem seus precários aparelhos de Estado e exponham seus camponeses e fazendeiros à concorrência desleal da agricultura subsidiada dos países ricos.
No Extremo Oriente, o Japão, encerrado o longo monopólio do poder pelo decadente e corrupto Partido Liberal-Democrático, também começa a se afastar dos EUA – mais visivelmente pressionando o Pentágono para abandonar sua base em Okinawa – e a cortejar a China, seu tradicional rival, com o objetivo de construir um bloco asiático.
A predominância financeira, resgatada da crise de Bretton Woods pela política de Paul Volcker, está se esvaziando rapidamente, sem que haja espaço para a repetição da manobra. O FMI, símbolo do antigo consenso ocidental, consumiu sua credibilidade na crise asiática de 1997, quando se aproveitou das dificuldades dos países vitimados por ataques especulativos para impor, de maneira demasiado descarada, os interesses financeiros e comerciais dos Estados Unidos e a ideologia neoliberal em voga. Para não mais dependerem da boa vontade da agência de Washington, os países periféricos acumularam reservas de maneira obsessiva, a ponto de se tornar banqueiros do Ocidente e ser chamados, em 2009, a socorrer a entidade. Hoje, os países da Zona do Euro que enfrentam, pela primeira vez, dificuldades financeiras fogem do FMI como o diabo da cruz. França e Alemanha falam em criar um Fundo Monetário Europeu e países asiáticos cogitam de algo semelhante.
Mas não é só a discórdia entre as potências ocidentais: é também o consenso das elites dentro de cada país, principalmente os EUA. Outrora, republicanos e democratas se revezavam sem traumas. A alternância de poder era parte do jogo e não impedia que os partidos negociassem propostas e fizessem concessões mútuas.
Nos últimos anos, isso mudou. Desde os tempos de Ronald Reagan, o ambiente político vinha-se crispando pela aliança do neoliberalismo yuppie com o fundamentalismo cristão dos grotões dos EUA, mas desde a eleição de Barack Obama o problema cresceu de maneira exponencial. Aos efeitos da crise acrescentaram-se rancores racistas e xenófobos à mistura já explosiva e uma crescente infantilização e vulgarização do discurso político. Um número muito multiplicado de canais de comunicação (incluídos os da internet) compete por uma atenção pública limitada e dessensibilizada e tenta conquistá-la com as afirmações mais chocantes e os insultos mais estridentes e grosseiros.
Votações no Congresso, mesmo sobre reformas modestas e nomeação de funcionários, são bloqueadas pela oposição ou se dividem por linhas estritamente partidárias e tratadas como questões de vida ou morte. Nem se fala mais de um plano universal da saúde pública. A mera proposta de regulamentação e generalização dos planos de saúde privados é enfrentada por políticos e comunicadores conservadores como se fosse um projeto de abolição da propriedade privada e do capitalismo, às vezes com estas exatas palavras. Ao mesmo tempo que a tentativa de limitar os custos públicos da saúde é histericamente denunciada, pelos mesmos personagens, como um “tribunal da morte” destinado a eliminar os improdutivos.
Se isso se dá no mainstream, na corrente principal da política, mais assustador ainda é o que se passa nas margens. Segundo o Southern Poverty Law Center (SPLC, uma ONG que monitora supremacistas brancos e similares) os grupos de direita “patriótica”, que veem o governo federal como inimigo, saltaram de 149 grupos em 2008 para 512 em 2009 e suas milícias armadas, de 42 para 127. Os grupos “nativistas”, que perseguem e intimidam imigrantes, passaram de 173 para 309. Os abertamente racistas cresceram de 926 para 932, apesar do colapso de uma rede neonazista de 35 grupos, cujo líder, Bill White, foi preso (por incitação à violência) em outubro de 2008. No conjunto, esses extremistas cresceram de 1.248 para 1.753 grupos.
Não é de admirar quando um comunicador como Glenn Beck, da Fox News, dá repercussão a teorias sobre uma conspiração do governo para implantar um regime totalitário. É o medo e o ódio como substitutos da ação comunicativa racional proposta por Jürgen Habermas, que neste início de século se mostra uma utopia mais distante da realidade que as do marxismo à moda antiga.
Na Europa, a modalidade mais comum de expressão da ira política é a xenofobia, exposta em manifestações que vão do referendo suíço que proibiu a construção de mesquitas à legalização, na Itália, de bandos de “vigilantes” formados para intimidar imigrantes. A inquietação com a crise econômica, com a falta de perspectivas pessoais ou coletivas e com o questionamento do senso comum hegemônico (“crucifixo é normal, lenço na cabeça é aberrante”, por exemplo) é deslocada para a humilhação dos ainda mais fracos.
Nessa forma, além de inofensivas para os poderes econômicos e financeiros, a ira e a violência são facilmente manipuláveis por políticos e por grupos criminosos. A presença das três máfias italianas – que, juntas, movimentam 100 bilhões de euros anuais, ou 5% do PIB – por trás das agressões em massa contra os roma em Nápoles e os africanos na Calábria não é casual. Desloca para bodes expiatórios a inquietação com sua crescente influência no Estado, com o despejo de lixo tóxico, com o monopólio mafioso de certos setores da economia sul-italiana. Mas não só: o crescimento do crime organizado é um fenômeno cada vez mais globalizado, com extensões na América Latina, África, Europa Oriental, Rússia e Oriente, movimentando 1 trilhão de dólares por ano. A guerra no Afeganistão e a aliança de Karzai com produtores e traficantes de ópio proporcionaram-lhe ainda mais combustível.
O que se vê no Ocidente, de forma mais aguda nos EUA, não é apenas uma crise econômica, mas também uma crise de autoridade. Uma crise de hegemonia, no sentido gramsciano. Depois de décadas de “pensamento único” perdeu-se a capacidade de definir um consenso e fazer dele o senso comum dos formadores de opinião. Nessas condições, como dizia Antonio Gramsci, as máscaras de normalidade e civilização não se sustentam e o recurso à força bruta, ultima ratio regum (último argumento dos reis) é inevitável.
Enquanto extremistas se multiplicam, também os governos tendem a transformar o estado de exceção em regra, como mostrou o filósofo italiano Giorgio Agamben. Nos EUA, a maioria democrata, liderada por Obama, acaba de prorrogar por mais um ano (por 315 votos a 97, em 25 de fevereiro), sem modificações, o chamado Patriot Act, o pacote imposto por Bush júnior logo após o 11 de Setembro, que dá ao governo poderes para vigilância telefônica de cidadãos, invasão de residências e arquivos por mera suspeita de terrorismo.
A isso pode-se somar um “Ato de interrogatório, detenção e processo de beligerantes inimigos” proposto pelos senadores John McCain (republicano) e Joseph- Lieberman (ex-democrata independente) após o fracassado atentado de um nigeriano contra um avião que pousava em Detroit no Natal de 2009. A proposta permite às Forças Armadas deter cidadãos e estrangeiros sem julgamento, indefinidamente, por suspeita de atividade terrorista.
Mas, como mostraram este e outros atentados, força e vigilância são substitutas muito ineficientes do consenso e hegemonia de tempos normais. Na vida real, os agentes dos serviços secretos e da chamada inteligência estão longe de corresponder à mitologia dos espiões do cinema. Como foi dito em Crise de Inteligência (CartaCapital 582), o inchaço desmedido de listas de suspeitos e motivos para suspeição cria embaraços e humilhações para inocentes, serve de pretexto para perseguir ativistas, intelectuais e críticos do governo ou do sistema, alimenta o ego de funcionários arrogantes, mas não consegue prevenir as verdadeiras ameaças ou levar à captura de terroristas realmente perigosos. Tentar controlar tudo é não controlar nada.
Crianças de 5 anos, senhoras idosas e veteranos são detidos em aeroportos porque na lista “No Fly” do FBI tem algum homônimo suspeito de atividades terroristas que pode ser um cantor britânico que promove o Islã (Cat Stevens), um jurista estadunidense que criticou o presidente (Walter Murphy), um jornalista colombiano simpático a Chávez (Hernando Calvo) ou um estadista que um dia apoiou a luta armada contra um governo racista (Nelson Mandela). O resultado é uma sensação de medo e ansiedade que tanto amplifica o impacto político do terrorismo quanto gera rancor e a desconfiança contra a interferência do governo, mesmo quando defende medidas de interesse popular, como a regulamentação dos bancos e a reforma da saúde.
A falta de consenso interno reduz a eficácia da ação internacional dos EUA. Mesmo que a supremacia mundial seja do interesse tanto de democratas quanto de republicanos e as ações imperialistas no exterior não estejam sendo seriamente questionadas, sua capacidade de honrar promessas e ameaças está comprometida, como se não bastassem os limites já postos pela crise econômica e pelo comprometimento militar no Iraque e Afeganistão.
As dificuldades com obstruções no Congresso impediram os EUA de terem papel construtivo na Conferência de Copenhague, deteriorando suas relações com a Europa. Obama sacrificou sua política latino-americana e cedeu aos golpistas de Honduras para desembaraçar a nomeação de um funcionário de segundo escalão. Pior, reduziram Washington à inércia no conflito palestino-israelense, depois de ter prometido uma nova era no relacionamento com o mundo árabe, no momento em que, também no campo internacional, a crise da hegemonia empurra o conflito para a ultima ratio regum, com todos os agravantes da tecnologia bélica do século XXI.
No ano fiscal encerrado em setembro, a DSCA – agência do Departamento de Defesa dos EUA responsável por exportações de armas – anunciou orgulhosamente que vendera 37,9 bilhões de dólares, ante um recorde anterior de 36,4 bilhões em 2008 e esperava mais 38,4 bilhões em 2010. Isso enquanto o Departamento de Estado queixava-se da “corrida armamentista” promovida pela Venezuela ao comprar armas da Rússia, segunda maior fornecedora. De 17 bilhões em 2001 (6 bilhões dos EUA), as vendas globais de armas a países periféricos passaram de 40 bilhões em 2007 (12 bilhões dos EUA) e 42 bilhões em 2008 (30 bilhões dos EUA). Apesar da crise ou por causa dela?
No Oriente Médio, Israel, organizações palestinas e Irã são exemplos de abandono progressivo das expectativas de soluções negociadas dentro de um acordo hegemônico. Tel-Aviv constrange aliados e enfurece inimigos com seus abusos em Gaza, Jerusalém, Cisjordânia e Dubai e intimida com projetos macarthistas suas próprias ONGs pacifistas, acusadas de dar munição às acusações de violações de direitos humanos pelo Exército israelense. Não mostra preocupação com o desgaste de sua imagem e da autoridade moral de seus defensores. Há motivos para recear que busca conscientemente alimentar uma radicalização palestina que dê pretextos para anexar de vez os territórios ocupados e expulsar os nativos incômodos.
A crescente agressividade verbal do Irã – que, ao contrário de Israel, ainda não detém armas nucleares, capacidade para produzi-las ou pretensões territoriais – é embasada menos em poderio bélico real- do que pela crise de hegemonia que impede o Ocidente de isolá-lo de fato, apesar das exigências de Tel-Aviv. O Irã melhora suas relações com Turquia, Síria, China, Rússia e Ásia Central e faz crescer seu prestígio ante o mundo árabe com desafios verbais a Washington e Tel-Aviv, apostando em que não se expõe a um ataque real.- Pode, claro, ser um erro de cálculo. Como também pode ser um erro a aposta dos estrategistas dos EUA de forçar o Paquistão a lutar contra o Taleban, com o risco de um fiasco que desprestigie seu precário governo civil a ponto de inspirar um golpe que pode, de fato, pôr um arsenal nuclear considerável nas mãos de fundamentalistas mais fanáticos que os do Irã.
Estimativa recente de especialistas do Centro Nacional de Pesquisas Atmosféricas dos EUA, citada na revista Scientific American Brasil de fevereiro, indica que uma guerra nuclear limitada à Índia e Paquistão, além de matar diretamente 20 milhões nos dois países, provocaria a morte por inanição de 1 bilhão em todo o mundo, por danos causados ao clima e à camada de ozônio. E nem se fala ainda do risco de os elefantes mais crescidos – EUA, China e Rússia – rolarem na grama, pesadelo que na ausência de consensos pode rapidamente passar da categoria do impensável à de risco real.
Além dos desentendimentos presentes sobre Taiwan e bases militares na Ásia e Europa, é visível que, mais cedo ou mais tarde, China e EUA terão de rediscutir a relação e fazer uma nova partilha de influência e recursos estratégicos em escala global. O novo poder tentará aumentar sua fatia. Se isso se fizer sem confronto aberto, será possível dizer que a humanidade conseguiu evitar o mal maior, mesmo que leve apenas a um consenso sobre o risco de mútua destruição e um equilíbrio do terror similar ao da Guerra Fria.
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