Além dos Aviões de Carreira
Por Sylvia Moretzsohn em 10/8/2010
O show vai recomeçar. No dia 23 de agosto o Jornal Nacional iniciará uma série para turbinar a cobertura das eleições presidenciais: visitará uma cidade de cada estado brasileiro, além do Distrito Federal, a bordo de um jato Falcon 2000 – eventualmente substituído por um monomotor Caravan, no caso de municípios menores –, com o alegado objetivo de oferecer um panorama geral do modo de vida e das expectativas dos eleitores.
É uma reedição, agora pelo ar, da caravana que atravessou o país quatro anos atrás. Porém, como daquela vez, não trará novidade. Porque, como daquela vez, o principal não é informar sobre a vida e os anseios das pessoas, mas enaltecer a potência tecnológica da maior rede de televisão do país, numa evidente estratégia de marketing que apenas reforça a crítica ao desvirtuamento do jornalismo transformado em espetáculo autorreferente.
Quatro anos antes, a "caravana" Em julho de 2006, o Jornal Nacional lançava a "Caravana JN", dedicando um bloco inteiro do telejornal para exibir a grandeza dos números: 15 mil quilômetros de estradas a serem percorridas; 380 quilos de equipamentos, que garantiriam transmissão via satélite de qualquer ponto do país; dois meses a bordo de um ônibus (o "motorhome", devidamente adaptado para a "missão") e oito dias num barco atravessando parte da região Norte. Comandada pelo jornalista animador dos Big Brothers, a expedição contaria, a cada quinzena, com outra celebridade: o casal-símbolo do JN se revezaria no deslocamento para as cidades por onde o ônibus passava, para dali ancorar parte do telejornal, arrastando consigo a previsível legião de figurantes.
Poeta reincidente, o jornalista-animador caprichava nas frases de efeito. Logo na estréia, por exemplo, se inspirou no nome da cidade de onde a caravana partia – a histórica São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul – para afirmar: "Do sul talvez possamos encontrar o norte de nossa missão mais facilmente...".
Quatro anos depois, o repórter é outro, mas a profusão de lugares-comuns persiste: o projeto "JN no ar" vai "decolar", a democracia vai voar "nas asas da informação", esse voo vai nos ajudar "a escolher melhor quem vai pilotar o Brasil depois da próxima eleição".
Da mesma forma, persiste a exaltação dos números: "Vamos voar pelo menos 55 horas a bordo deste jato executivo de fabricação francesa", capaz levar, "sem escalas, a qualquer ponto do território nacional", voando "a mais de 800 km/h" e carregando "700 quilos de equipamento" eletrônico, a ser montado em cada aeroporto para o envio das reportagens.
A mesma velha história O nome escolhido para a série pode não ter sido o melhor – afinal, o JN, por definição, deve sempre estar "no ar" –, mas os propósitos declarados são os mesmos que sustentaram os da caravana, quatro anos antes: identificar "os desejos do Brasil". Não só as preferências eleitorais, não só "um retrato do estado, feito com base em dados de pesquisas de instituições respeitadas como o IBGE", mas aquilo "que não aparece nas planilhas, mas faz o orgulho de cada lugar: o bom humor dos seus moradores, suas ruas limpas (sic), sua riqueza de cultura e história".
Mereceria comentário essa intenção deliberada de exaltar as qualidades de nossa terra e nossa gente, tão característica dos tempos do "Brasil grande", quando a Globo, aliás, se firmou como campeã de audiência. Mais interessante ainda é indagar o quê, afinal, distingue esse enorme e custoso esforço de reportagem do material veiculado diariamente pela emissora. Apresentar o Brasil aos brasileiros – de preferência sem demagogias, mas aqui não se trata de discutir a orientação ideológica da empresa – acaso não é o fundamento de qualquer trabalho jornalístico?
Ao sabor do acaso Na época da "caravana", o jornalista Mário Marona comentava, em artigo reproduzido neste Observatório ("Jornal Nacional tenta retomar o caminho. De ônibus", 1/8/2006):
Nada disso é novidade, porém. A CNN teve o seu "Election Express", um ônibus que cruzou os EUA entre dezembro de 2003 e novembro de 2004, quando Bush saiu vitorioso. Na eleição de Obama, ano passado, exagerou de tal forma na mágica das holografias que poderia concorrer ao Oscar de efeitos especiais. Para o jornalismo inspirado em Hollywood, a informação é o que menos importa.
Novidade talvez seja a forma pela qual se definirá o destino do jatinho global: por sorteio, na bancada do Jornal Nacional, na véspera de cada viagem. Acrescenta-se aí um elemento típico de show de variedades, tão ao gosto da audiência. Quem sabe não se formarão listas nas "redes sociais" para tentar adivinhar as cidades a serem visitadas? Quem sabe não haverá rufar de tambores para sublinhar a excitação durante o sorteio? E o que diriam os nossos teóricos do jornalismo, ao se darem conta de que os "valores-notícia" podem oscilar ao sabor do acaso?
Resta indagar se, numa próxima visita de William Bonner a uma das nossas universidades que cultivam o convênio com a Globo, haverá alguém na platéia capaz de deixar de lado o deslumbramento para fazer as perguntas que realmente importam.
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=602IMQ002
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